Leitura intersemiótica em Ruína, de Gabraz Sanna.


O presente texto faz uma análise intersemiótica do curta-metragem Ruína[1] dirigido pelo artista visual Gabraz Sanna no ano de 2016. Trata-se de um documentário com duração de 14 minutos - parte que integra a trilogia “Absolutamente Sós” [2] - filmado na cidade do Rio de Janeiro. O curta apresenta a leitura da poesia Ruína de Manoel de Barros com performance de Maria Bethânia em ambiente aberto, sem cortes e em imagens cruas. Descreve a sinopse da obra “Uma mulher lê um poema, mas o mundo não parece se importar”. A proposta do filme é promover uma reflexão sobre as dificuldades impostas pela sociedade contemporânea à manifestação poética. A produção cinematográfica, que encabeça o mesmo nome da poesia de Manoel de Barros, apresenta a leitura do referido texto e as sucessivas interrupções provocadas pelo contexto ao redor, para além disso, outros elementos se arrolam na tessitura da narrativa que permitem uma releitura curiosa.

À respeito, Plaza (2003) afirma que as realizações artísticas de nossos antepassados traçam os caminhos da arte nos dias de hoje e também seus descaminhos. Nesse sentido, o passado é reanimado através da leitura que nos permite compreender melhor o presente clareando nossa esperança no futuro.  Manuel de Barros (1916-2014) foi poeta, advogado e fazendeiro em Mato Grosso do Sul. Com vasta obra literária tematizou a natureza, a vida simples, a incompletude do ser humano, o caos existencial.  O poema abaixo, texto base da tradução de Gabraz Sanna, apresenta um diálogo entre o eu-poético e um monge em estado de perplexidade. Este comunica seus anseios diante da caoticidade e deseja construir uma ruína para abrigar o abandono tão presente nas relações humanas. Paradoxalmente a construção de uma ruína - feito tapera - embora já pressuponha destruição, servirá ao monge para abrigo da palavra abandono e todas as suas confluências.  O sábio tem esperança de que do caos renasça a vida.

Segue o texto,  

Um monge descabelado me disse no caminho: “Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como a tapera abriga. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro (O olho do monge estava perto de ser um canto). Continuou: digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo”.
E o monge se calou descabelado.
(BARROS, 2010, pp. 385-86)

Retomando Plaza (2003), a tradução intersemiótica é entendida como uma releitura uma interpretação dos signos verbais por meio de signos não-verbais (cinema, pintura, dança etc).  A tradução apresentada no curta-metragem ora em estudo torna-se um terreno fecundo para significações possíveis que faz do texto manoelino um objeto vivo, polissémico e intrigante. Nas palavras de Santos (2003), a tradução permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo vistas em momentos diferentes, nesse caso, da primeira publicação do poema em 1947 e da sua tradução em 2016. Os sentidos produzidos nessa versão digital saltam do papel que aliado ao som, ao gesto e a imagem transfiguram-se da palavra escrita para o dito e o vivido no momento presente.
No que se refere ao som, a leitura é interrompida várias vezes, Bethânia não encontra paz requerida para a fruição poética. O latido do cachorro, o voo da abelha, o barulho das hélices de um helicóptero, o ruído do motor e a buzina dos carros, o frasco de água que cai... e vozes envolvem o cenário de gravação quebrando a fluidez da leitura interrompendo a inspiração da ledora, nitidamente desconsertada.  O texto oraturizado em versão digital ganha meneios gestuais que intensificam a leitura e a recepção criando uma amplitude de percepção.
            O gênero curta-metragem tem características singulares que por si só apresenta o novo na tradicional esfera do mundo audiovisual. Trata-se de um filme com início e fim, com unidade temática, coesão e coerência interna, com duração aproximada de 15m. podendo chegar até 30 minutos. Esse modo de expressão potencializa a experimentação da linguagem configurando-se num objeto emergente na cinematografia mundial.  Produzido, geralmente, por jovens ávidos por desbravar outros modos de experimentação da arte, objetivando com ousadia a inovação, a subversão – ou ainda a desconstrução – dos modelos audiovisuais estabelecidos.  Gabraz  Sanna destaca-se nesse cenário com maestria. Artista visual com forte inclinação ao cinema experimental (curtas), trabalhou com cinema e artes plásticas nos mais diversos formatos. É roteirista, diretor, fotógrafo e montador. Em 2006 realizou uma série de filmes com grandes nomes da literatura em língua portuguesa como Manoel de Barros, Maria Gabriela Llansol e Maria Bethânia. Trabalho que deu origem a trilogia  'Absolutamente sós' do qual Ruína faz parte.

A tradução do texto de Manoel de Barros idealizada por Gabraz é uma ação crítico-criativa que problematiza o lugar da arte na contemporaneidade. Para além disso, em dias de informação em tempo real e transformações constantes cabe questionarmos, em sentido macro, o tempo-espaço ocupado pela poesia. Ou ainda, recortando a cena, quem está do outro lado por traz dos ruídos que interrompem a fruição artística da ledora: o que fazem e o que buscam? Gente por trás dos ruídos num tempo que corre, num dia que se vai. Gabraz não os silenciam, pois respondem as inquietações do poema em diálogo simultâneo. A arte permanece como terra profícua para pensar, questionar, denunciar os males da sociedade globalizada e em ruína. Texto escrito, texto lido, texto em vivência plena numa expansão do presente.
A tradução de Gabraz dilata o espaço-tempo presente ao captar o exterior que passa a interagir com a escrita/leitura numa experimentação da linguagem: o espaço não se fecha no foco captado pela câmera, remete-nos a outros; o tempo não é linear, há sucessivos cortes, um começar de novo que não se prende ao tempo corrente.  Assim, o real explica o texto porque este é evento e por ser evento revela-se. Nesse sentido, recordo Santos (2002) e sua sociologia das ausências[3] que a defende como um processo de transformação das ausências em presenças, colocar em evidência o que e quem por força dominante foi posto em oculto. Tornar o impossível possível, o não-acreditável acreditável a fim de valorar as experiências sociais, todas elas. Ao captar elementos externos o cineasta presume respostas às indagações suscitadas pelo texto em leitura.
Elementos variados estão justapostos, mas parecem dissonantes. Cada um estabelece seu lugar do dizer que evidencia a fragmentação das relações humanas nos dias atuais e anuncia, ao mesmo tempo, outras existências que caminham solitariamente na busca do existir. A imagem em preto e branco aponta para um estado sem cor e sem vida. Entretanto, remete-nos também a uma lembrança bucólica dos tempos idos, um breve recuo ao passado.  Vale destacar o efeito de aproximação de zoom que capta a mão, a face, a boca da artista sugerindo uma necessidade do direcionamento do foco às partes, para as singularidades, para o humano e seu movimento.
Em suma, o processo de tradução de Gabraz Sanna se pauta numa releitura do texto base que transcorre de forma dialógica de modo que um explica o outro.  Há uma clara sensação de incompletude e de carência que salta do texto escrito tornando-se matéria viva no texto midiático, contextualizado. Tal sensação motiva o trabalho de tradução do cineasta que ao fim do vídeo propõe uma profunda reflexão sobre a humanidade e o seu estado na contemporaneidade. Um convite ao retorno no tempo primevo na busca da essência do ser, do existir em sociedade. Um resgate do passado para ressignificar o presente visando esperança no futuro.
À respeito, Plaza (2003) trata da necessidade de recuperação da história para se estabelecer uma relação operativa entre o passado, o presente e o futuro.  A esse fim, a arte da tradução insere-se como uma técnica que materializa sentimentos, que  promove um confronto, um encontro-desencontro do indivíduo consigo mesmo e com a história. A tradução de Sanna é brilhante nesse aspecto, pois coloca em discussão questionamentos sobre o que separa e une a humanidade.  Alude a valorização das culturas primeiras, transcendental, em oposição à cultura globalizada e globalizante. 


Segundo Souza (2002, p.267), o trabalho de tradução “incide simultaneamente sobre os saberes e as culturas, por um lado, e sobre as práticas e os agentes, por outro. Além disso, esse trabalho tem de identificar o que os une e os separa.” No que se refere ao trabalho de tradução de Gabraz Sanna, é inteligível a ruína na qual se encontra a humanidade globalizada e a necessidade de uma reflexão sobre os passos tomados pela sociedade ao longo da história. Sugere outros caminhos.  Trata-se de um belíssimo trabalho que permeia o  campo intelectual e, também, político.



[1] Dirigido por Gabraz Sanna, Ruína é um curta-metragem experimental vencedor do Prêmio Aquisição Canal Curta e Porta Curtas no Festival Curta Cinema de 2016.  Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=E_JJrE7W1wE
[2] Produzida pelo artista Gabraz Sanna, a trilogia “Absolutamente sós” apresenta encontros com Manoel de Barros, Llansol e Maria Bethânia, teve início em 2006. Trata-se de Documentário Experimental.
[3] Boaventura (2003) descreve a teoria das ausências, a teoria das emergências e o trabalho de tradução no texto “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências” In: Revista Científica de Ciências Sociais, 63. Outubro. 2002, p. 237-280.

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